Entrevista com Massimo Introvigne, director do CESNUR - Centro de Estudos sobre Novas Religiões, Zenit, 24 de Agosto de 2003 *
* entrevista anterior à data em que o Hamas ganhou as eleições palestinianasTURIM - Máximo Introvigne, director do Centro de Estudos sobre Novas Religiões (
CESNUR) com sede em Turim, desvenda nesta entrevista a orgânica do movimento fundamentalista Hamas, ramo palestiniano dos Irmãos Muçulmanos.
Introvigne adverte que não se pode evitar o factor religioso quando se analisa o Hamas, e diz que «a questão Palestina, para o Hamas, não é uma entre muitas como a Chechénia, Caxemira ou outras: é a mãe de todas as questões, e não só por razões políticas mas também teológicas».
Introvigne é autor de numerosos livros, o último dos quais - em italiano - está dedicado precisamente ao Hamas. «Fundamentalismo islâmico e terrorismo suicida na Palestina», editado por
Elledici.
- O que é exactamente o movimento Hamas?- Introvigne: O Hamas é parte de uma grande galáxia internacional, o fundamentalismo islâmico, que tem influência sobre milhões de pessoas. Hamas é um ramo palestiniano do movimento fundamentalista islâmico, os Irmãos Muçulmanos, fundado no Egipto em 1928 por Hassan al-Banna. Em 1954, o presidente egípcio Nasser declarou-os ilegais e perseguiu-os, facto que determinou uma forte divisão interna.
Por um lado temos uma corrente radical que se mantêm fiel à fórmula leninista do golpe de Estado. Por outro lado, há uma corrente neo-tradicionalista que tenta perseguir uma islamização da base. É uma espécie de visão gramsciana (de Antonio Gramsci), que quer conseguir o poder mas antes conquistar a sociedade, organizando o sindicato muçulmano, as escolas muçulmanas, os jornais muçulmanos.
Em 1957, a direcção dos Irmãos Muçulmanos na Palestina adequou-se à posição neo-tradicionalista, cessou toda actividade militar, deixou de organizar atentados e dedicou-se a redobrar o número das mesquitas presentes na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Construiu uma rede de instituições fundamentalistas, povo por povo e bairro por bairro. Entre 1957 e 1987 deu-se na Palestina uma actividade armada e terrorista ligada aos nacionalistas leigos de Fatah e a outros componentes da OLP (Organização para a Libertação da Palestina).
Mas em 1987 rebentou a Intifada, num momento de debilidade da OLP. Então, os Irmãos Muçulmanos declararam que a operação neo-tradicionalista tinha tido êxito e que já se podia passar para uma fase radical de luta armada. A rede islâmica é forte em toda a Palestina. Ali fundaram o Hamas, uma palavra que significa «fervor» e que ao mesmo tempo é acrónimo de «Movimento de Resistência Islâmico».
- É uma ousadia definir Hamas como um movimento religioso?- Introvigne: Não, de facto podemos defini-lo assim. Com frequência, no Ocidente comete-se o erro de considerar os fenómenos religiosos como superstruturas. É uma herança da análise marxista. Está claro que em todos os fenómenos complexos as causas são múltiplas e entrelaçam-se motivos económicos, políticos e religiosos. Mas no caso de Hamas a religião é um elemento determinante.
Se lermos a sua Carta, vemos que como está organizado tem como objectivo transformar Palestina num estado islâmico, ou seja, regido pela «sharia» (lei islâmica), na perspectiva de uma reunificação de todo o mundo muçulmano no Califado. Mas com uma especificidade, anunciada no artigo 14: a liberdade da Palestina é uma obrigação para todo muçulmano, viva no país que viva.
A questão Palestina, para Hamas, não é uma não é uma entre muitas como a Chechénia, Caxemira ou outras: é a mãe de todas as questões, e não somente por razões políticas mas também teológicas.
- Seria utópico pensar que Hamas possa desaparecer totalmente dos territórios palestinianos?
- Introvigne: Sim. A realidade é que entre membros e simpatizantes conta com milhares de pessoas. A solução do problema de Hamas não pode ser somente militar.
- O Hamas utiliza a religião para justificar o terrorismo?- Introvigne: Na visão do mundo do fundamentalismo islâmico, não há diferença entre política e religião. E mais, afirmar que são diferentes considera-se um preconceito tipicamente ocidental que os fundamentalistas consideram estranho para a tradição islâmica.O Hamas dedica muita atenção para superar as objecções, segundo as quais, o suicídio iria contra o Islão e, portanto, os atentados suicidas não seriam lícitos para um muçulmano. O Hamas responde que não se trata de suicídio mas de martírio, e encontra figuras similares na galáxia fundamentalista que lhe dão a razão.
Pode ser desagradável dizer que o terrorista suicida de Hamas está movido pela religião. Mas é assim. É um erro considerar que são manipulados ou pessoas que escondem motivos económicos.
Uma análise do perfil socioeconómico dos que fizeram uma opção pelo martírio diz que seu nível, seja do poder aquisitivo ou de educação, é superior à média dos palestinianos. E mais, alguns terroristas formavam parte da mais alta burguesia.
É a ideologia, ou melhor a religião, que os impulsiona. Não é somente o desespero.
- No Hamas há mulheres kamikazes?
- Introvigne: A verdade é que até agora, nos atentados de Hamas, não participaram mulheres. O movimento não exclui a possibilidade teórica de que isto ocorra. Na Palestina já houve mulheres que se suicidaram, mas formavam parte das Brigadas dos Mártires al-Aqsa, uma formação leiga e nacionalista.
O Hamas manifesta que sua teologia não impede o martírio das mulheres, e de facto exalta as mulheres dos movimentos fundamentalistas chechenos que cumpriram atentados suicidas. Oferece maior dificuldades de carácter operacional, por exemplo, segundo o Hamas, as mulheres que fossem a Israel teriam que ir cobertas pelo véu e isto faria que a polícia as identificasse facilmente.
O Hamas afirma que há muito mais jovens palestinos de sexo masculino que solicitam converter-se em mártires dos que podem assumir. Assim, o problema das mulheres não se estabelece de momento.
- Hamas poderia abandonar as armas e negociar em nível político?
- Introvigne: Se nos limitássemos a ler a Carta do Hamas - um documento que afirma a luta perene até que os israelitas sejam expulsos - a resposta seria negativa.O Hamas soube sempre conjugar a poesia da retórica e a prosa da realidade.O Hamas não é um monólito e em seu interior existem correntes mais pragmáticas, sobretudo uma parte dos líderes internos de Cisjordânia, que nisto se diferencia do Qatar.Imaginar um processo de paz que considere como único interlocutor a Fatah ou em geral os componentes «leigos» do mundo palestino e que exclua completamente os partidos religiosos não é racional.
Um dos grandes desafios é o de encontrar em seu interior interlocutores dispostos a falar de paz, ou ao menos de trégua e de renúncia ao terrorismo.
Ocidente às vezes é vítima de uma espécie de «síndrome de Voltaire», segundo o qual, o melhor interlocutor do mundo árabe é o mais leigo e menos religioso. Mas os interlocutores sem raízes religiosas nos países de maioria islâmica com frequência têm escassa audiência popular.