Extrato da entrevista de Alexandra Lucas Coelho a Ali Ahmad Said Esber, publicada no jornal »Público», Junho de 2006(...) Nascido na aldeia de Al-Kassabin, no Norte da Síria, em 1930, Ali Ahmad Said Esber mudou de nome muito novo, quando a publicação dos seus poemas foi rejeitada. Escolheu um nome pagão e viveu de acordo com ele. "A-religioso", como se define, Adonis é uma voz incómoda para todos os fundamentalismos. Em 1956 deixou a Síria pelo Lìbano, onde pensou poder viver livremente, até que Beirute foi cercada. Seguiu-se Paris. Lá está. Exprime-se fluentemente francês, desembaraça-se em inglês, mas na verdade, garante, só fala uma língua, o árabe. É em árabe que pensa, diz e escreve.- Há muito tempo que é uma voz livre na sua crítica em relação aos países árabes, e ao que sente que neles é auto-destrutivo. Há 30 anos fez uma diagnóstico duro para o fim do milénio. Agora, quando olha para o que chamamos mundo árabe, o que vê?
- Não estou nada surpreendido pelo estado actual de coisas. Nem sobre o plano económico, nem sobre os planos social e cultural. Tinha a intuição de que o mundo árabe vivia num estado de degradação e de retrocesso. Escrevi muito sobre isso, tive não poucos inimigos por isso, diziam-me que eu só via a degradção, que mesmo em plena revolução eu vira a decadência.
A cultura árabe estava a centrar-se nos frutos da árvore e não nas raízes. Não colocávamos nenhuma questão fundamental, por exemplo, em relação à religião. Dizíamos que a religião estava morta, que já não tinha importância.
- Está a falar de que época?- Dos anos 50.
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- O mundo árabe estava em revolução. E depois?
- Eu tinha a intuição de que essa revolução só tinha perante si a derrota absoluta. Porque eles não punham qualquer queastão radical sobre a sociedade: a cultura fundada sonre a religião, o indivíduo, a sua liberdade, o outro diferente de mim e o seu direito à diferença. Isso não lhes interessava. Era a política, criar um regime. E acreditava-se que a partir desse regime tudo mudaria. O resultado foi o mais reaccionário. Construíram-se muito mais mesquitas do que nos anos precedentes. A religião enquanto ideologia fez muitos progressos durante os regimes ditos revolucionários. E nada mudou, no fundo.
- Mulheres que não usavam véu nos anos 60 agora têm filhas tapadas. O que se passou?- Há uma explicação corrente, que é o fracasso da esquerda - a religião seria a única alternativa. Acho que é uma explicação insuficiente, porque a religião esteve sempre presente. Havia uma superfície repressiva, de esquerda, como Nasser [líder do Egipto]. Mas Nasser nunca mudou nenhuma lei para fundar o socialismo. Nunca mudou a universaidade, as leis da herança, do casamento. Não fez nada, essencialmente. Foi isso que permitiu aos religiosos ocupar o lugar político actual.
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- Depois do 11 de Setembro, dos atentados de Londres, da reacção às caricaturas de Maomé, da vitória de Hamas, o que é que vê?- Neste momento, só vejo forças religiosas. Os outros, as forças progressivas, digamos, estão dispersas, mal-organizados, matam-se entre si. No fundo, não há forças anti-religiosas, porque se as há não o ousam dizer. Querem alianças políticas nas eleições. Os progressistas neste momento fazem alianças, na Síria, no Líbano.
E mesmo a esquerda que é oposição, trabalha com os religiosos da oposição. Isso não poderá chegar a criar qualquer mudança na sociedade. Portanto, não vejo nada de que possamos dizer: eis um projecto digno de ser defendido. Se o mundo árabe não separa a religião da política, que poderá fazer? Se não cria um Estado civil, onde a democracia reine realmente, o homem tenha o direito da diferença, de não-fé como de fé...
- Não crê num futuro religioso? O futuro tem que ser laico? - Se não há laicidade não há futuro. O que complica o progresso, em relação à religião, é que enquanto fé real, revelação, terminou há muito tempo, está acabada. O que chamamos religião é uma ideologia política. Isso é o pior, o mais infeliz, agora. Uma religião que não é mais do que ideologia política. É horrível.
É possível discutir com um homem de fé, mas com um homem que transformou a sua fé religiosa em ideologia não se pode discutir.
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- O que sente quando ouve falar do choque de civilizações?- É superficial. Será que há um choque entre Pessoa e Al Mutanabi? Entre os criadores americanos e árabes? Entre Averróis e Hegel? É um jogo, um falso problema. O choque de civilizações é político. Há um choque de regimes, de interessse, de exércitos, mas de civilização não. Se a civilização é encarnada pela criatividade, então a criatividade na história humana foi uma, como quando duas pessoas se unem no amor. A criação une. Mesmo na época de guerra entre os povos antigos, gregos, fenícios, sumérios, árabes, cristãos, os criadores eram irmãos, além da sua língua e nacionalidade.
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- Como árabe que é, acha que há vozes suficientes do lado árabe, muçulmano, a pronunciarem-se?- Não. A crítica mais radical à política americana, em relação aos muçulmanos, ao Médio Oriente e Israel não é dos árabes mas dos ocidentais. Os maiores críticos dos americanos são americanos, a começar por Noam Chomsky. Mas nós somos um pouco minoritário.
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Se fizermos a comparação entre o estado actual do mundo árabe e a sua história podemos dizer que não há grandes pensadores no interior da fé muçulmana, como havia. Podemos encontrar pensadores nascidos na sociedade muçulmana que são livres. Mas esses, a partir do momento em que repensam um problema no islão são condenados, como Nasser Hamid Abu Zeid. Mas não encontra no centro do islão qualquer pensador. Mais, diríamos que o islão fundamentalista detesta tudo o que é criatividade no domínio das artes: nada de pintura, de escultura, de poesia.