Observatório da Jihad


27.6.06

Fábrica de imagens

Helena Matos
in Público, 17.06.06

Durante a primeira guerra do Iraque, um dos jornalistas que ficaram em Bagdad foi o espanhol Alfonso Rojo. Dessa experiência resultou um ódio desproporcionado de Rojo aos repórteres das grandes cadeias de televisão - com destaque para Peter Arnett, então grande estrela da CNN - e um livro que se lê vertiginosamente: «Os Maus Rapazes de Bagdad. Diário de Guerra», editado em Portugal pela Inquérito. Este livro é um retrato vivíssimo sobre o Iraque de Saddam. Imperdíveis são, entre outras, as linhas que Rojo dedica a uns portugueses assentadores de mármore que encontra em Bagdad já em plena crise dos reféns. Ou seja, durante aquele Verão de 1990 em que Saddam Hussein não só não deixava três mil cidadãos estrangeiros sair do Iraque, pois em caso de ataque eles poderiam funcionar como escudos humanos, mas também fazia questão de se deixar filmar ao lado desses homens, mulheres e crianças chamando-lhes "convidados especiais" enquanto os cumprimentava. A imagem em que Saddam puxava pelo braço de Stuart, um rapaz britânico, e lhe fazia festas no cabelo é um documento profundamente aterrador. Os portugueses acabariam por sair do Iraque após uma longa espera e muita laje assentada pois a empresa portuguesa que fornecia Saddam dos marmóreos materiais, ainda conseguiu colocar em Bagdad quatro toneladas de mármore a escassos dias de a ONU decretar um embargo ao Iraque. O livro de Alfonso Rojo e a sua denúncia da encenação de imagens para repórter ocidental mandar para casa tornaram-se-me subitamente presentes nos últimos dias, ao acompanhar as notícias que davam conta daquilo que foi definido como "massacre numa praia de Gaza" e em que de uma família apenas uma criança sobreviveu. Rapidamente soubemos que se chama Houda Ghalya e tem dez anos. Quem a viu chorando a morte do pai, da mãe e dos seus irmãos percebeu que poderia estar diante dum fenómeno semelhante ao de Mohammed al-Doura. Assassinado enquanto se protegia nos braços do pai, em Setembro de 2000, este menino palestiniano de 12 anos tornou-se o pretexto e o símbolo da nova Intifada. Houda Ghalya gritando desesperadamente pelo pai que perdera era uma imagem tão poderosa quanto a do corpo sem vida de Mohammedal-Doura, caído nos braços dum pai também ele morto. Tal como aconteceu com a morte de Mohammed al-Doura, também neste caso se esqueceram imediatamente os obuses lançados de território palestiniano sobre israelitas tão civis quanto o era a família de Houda Ghalya. Entretanto, num processo tão rápido quanto de legalidade duvidosa, o presidente palestiniano Mahmoud Abbas anunciava ter adoptado a pequena Houda Ghalya. Por uma trágica coincidência, o destino de Houda Ghalya assemelha-se cada vez mais ao de Mohammed al-Doura. Investigações posteriores, nomeadamente da televisão alemã, confirmaram que Mohammed al-Doura não foi morto pelo exército israelita. Não é que não pudesse ter sido, mas provavelmente não foi. Antes pelo contrário, terá sido vítima de fogo cruzado palestiniano. O que nada altera o absurdo da sua morte mas faz uma diferença substancial no que respeita aos apoios à chamada causa palestiniana. Hoje, sexta-feira, quando escrevo esta crónica, não se sabe quem terá morto a família de Houda Ghalya: um míssil israelita ou uma mina palestiniana? Face ao que sucedeu naquela praia, isso pode parecer um detalhe grotesco. Mas não é. E sendo certo que desejo ardentemente que não tenha sido Israel, não posso deixar de me interrogar o que será feito de Houda Ghalya se em vez de símbolo da causa palestiniana se tornar na sobrevivente do fogo amigo do Hamas e da Fatah? Nas últimas semanas vários palestinianos têm perdido a vida em confrontos entre si. Deles não sabemos nem o nome, nem o sexo e muito menos a idade. Provavelmente os seus familiares não os choram porque jamais os vemos nas televisões. Muito menos vemos as lágrimas vertidas por aqueles que, acusados de colaboracionismo com Israel ou de outro pecado qualquer, são executados por uma das muitas brigadas, movimentos, grupos e organizações em que está arregimentada boa parte dos palestinianos. Por exemplo, que atenção mereceram Jefal Ayesh e Wedad Mustafa? A sua história é tão terrível quanto o seu fim. Ele tinha 25 anos, ela 27. Amavam-se. Ela era viúva de um membro das Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa. Ele, alvo de chantagem, terá passado informações aos israelitas. Foram ambos detidos, torturados e executados no início deste mês de Junho num campo palestiniano. O destino deste casal pouca atenção mereceu na imprensa internacional. E caberá perguntar por que não vimos nós o vídeo gravado durante os interrogatórios de Wedad Mustafa e de Jefal Ayesh? Afinal, material audiovisual é aquilo que não nos falta sobre a chamada causa palestiniana. Sendo certo que Israel não está isento de culpas nem de responsabilidades na questão palestiniana, também é certo que o maior problema dos palestinianos são por um lado os irmãos árabes, que além de os massacrarem de facto os têm atirado para estratégias suicidas, e por outro as suas próprias lideranças. Seria interessante perceber em que foram gastos os milhões e milhões de dólares, euros e outras moedas que, ao longo de décadas e décadas, têm sido afectados aos palestinianos. Onde estão os livros, as escolas, as estradas, as estações de tratamento de água... que tantas vezes têm sido pagas? Além dos 165 mil funcionários públicos contratados pela Autoridade Palestiniana e daqueles que estão afectos aos diversos e antagónicos serviços de segurança, o que se produz, fabrica e cria nos territórios que estão sob a jurisdição da Autoridade Palestiniana? A crise gerada pela suspensão da ajuda europeia e norte-americana aos palestinianos após a eleição dum governo do Hamas tornou evidente como os palestinianos se tornaram não só absolutamente dependentes destas ajudas mas sobretudo como consideram ter absoluto direito a elas. Mesmo aqueles dirigentesque nos são apresentados como moderados, como será o caso da delegada-geral da Palestina em Portugal, senhora Randa Nabulsi, verbalizam esta reivindicação dos fundos como se estes fossem uma alínea do seu PIB: "Primeiro foi Israel que, há três meses, reteve o nosso dinheiro: 50, 60 milhões de dólares por mês. Os americanos fizeram o mesmo. Mas porquê a Europa? Ficamos espantados com a reacção da Europa", perguntava a delegada-geral da Palestina em Portugal durante uma entrevista ao semanário Expresso. Excluindo o dinheiro retido por Israel, que em parte pode corresponder a verbas tributárias devidas à AutoridadePalestiniana, que dinheiro da Autoridade Palestinina reteve a UE? E os EUA? Dependentes economicamente, os palestinianos são-no também mediaticamente. Por isso não vimos o vídeo da confissão de Wedad Mustafa, não voltámos a ouvir falar de Mohammed al-Doura e não sabemos se iremos voltar a ouvir o nome de Houda Ghalya.

1 Comments:

At 13:41, Blogger Unknown said...

Sliver, só um aviso: o link do Faith Freedom mudou, o antigo agora só serve de arquivo.

Cumprimentos.

 

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