Observatório da Jihad


23.10.06

O contra-iluminismo de hoje

por Ralf Dahrendorf
Sociólogo, membro da Camâra dos Lordes e antigo Reitor da London School of Economics e do St. Antony's College de Oxford.
in PÚBLICO/Project Syndicate

Ainda há bem pouco tempo, poderíamos ter concluído que, pelo menos na Europa, deixara de haver tabus. Um processo que começou com o Iluminismo tinha atingido o ponto a partir do qual "valia tudo". Em especial no que toca às artes, não havia limites aparentes para mostrar aquilo que, há apenas uma geração, seria olhado como altamente ofensivo. Há duas gerações, muitos países tinham censores que tentavam não só evitar que a gente jovem visse certos filmes, mas que chegavam a proibir certos livros. Desde os anos 60 que estas proibições tinham enfraquecido a um ponto tal que o sexo explícito, a violência, a blasfémia - mesmo que incomodando algumas pessoas - eram tolerados como parte de um mundo das Luzes. Ou não era exactamente assim? Não há, realmente, qualquer limite? Fora daEuropa, a atitude do "vale tudo" nunca foi completamente aceite. E mesmo na Europa sempre houve algum tipo de limites. O historiador David Irving ainda está preso na Áustria pelo crime de negação do Holocausto. Claro que este é um caso especial. A negação de uma verdade muito bem documentada pode conduzir à prática de novos crimes. Mas a resposta à velha questão "o que é a verdade" nem sempre é assim tão clara. Por exemplo, o que é que realmente pretendemos, quando insistimos com a Turquia para que reconheça o genocídio arménio como uma condição para poder ser membro da União Europeia? Estamos assim tão seguros da teoria darwinista da evolução ao ponto de banirmos qualquer noção alternativa das escolas? Os que se preocupam com a liberdade de expressão sempre se interrogaram sobre os seus limites. Um deles é o incitamento à violência. O homem que se ergue no meio da uma multidão e grita "fogo" quando não há incêndio nenhum é culpado por aquilo que acontecer. Mas se houve realmente um incêndio? É este o contexto em que podemos encarar esta recente invasão de tabus islâmicos num mundo esclarecido e maioritariamente não islâmico. Desde a fatwa sobre Salman Rushdie por causa dos Versículos Satânicos até ao assassinato de uma freira na Somália em resposta à aula do Papa Bento XVI em Ratisbona e ao cancelamento da representação do Idomeneo de Mozart, com as suas cabeças decapitadas de fundadores de religiões, na Ópera de Berlim, assistimos ao uso daviolência e da intimidação para defender determinados tabus religiosos. Nem todas as questões aqui levantadas têm resposta fácil para os defensores civilizados das Luzes. A tolerância e o respeito em relação a pessoas que têm assuas próprias crenças são algo de positivo e talvez mesmo necessário para preservar um mundo esclarecido. Mas há o outro lado da questão. Respostas violentas a pontos de vistas indesejáveis não têm justificação em caso algum e não podem ser aceites. Os que argumentam que os bombistas suicidas exprimem uma raiva compreensível já venderam a sua própria liberdade. A autocensura é pior do que a censura, porque sacrifica voluntariamente a liberdade. Isto quer dizer que temos de defender Salman Rushdie e os cartoonistas dinamarqueses e os amigos do Idomeneo, independentemente de gostarmos ou não deles. Se alguém não gostar deles tem à sua disposição todos os instrumentos do debate público e do discurso crítico próprios de uma comunidade inspirada pelas Luzes. Também é verdade que não somos obrigados a comprar este ou aquele livro ou a ouvir esta ou aquela ópera. Em que mundo triste viveríamos se tudo o que pode ofender um determinado grupo não pudesse ser dito. Uma sociedade multicultural que aceitasse cada um dos tabus dos seus diversos grupos não teria nada para dizer. O tipo de reacções a que temos assistido recentemente perante pontos de vista que são ofensivos para alguns não anunciam nada de bom para o futuro da liberdade. É como se uma nova vaga de contra-iluminismo estivesse a varrer o Mundo com as opiniões mais restritivas a tornarem-se dominantes. Devemos reafirmar de forma veemente as nossas opiniões esclarecidas contra estas reacções. Defender o direito de todos a dizer o que pensam, mesmo que detestemos o que digam, é um dos primeiros princípios da liberdade. Por isso, Idomeneo deve ser representado e Salman Rushdie deve ser publicado. O direito de um editor a publicar cartoons ofensivos para os crentes de Maomé (ou de Cristo, tanto faz) depende apenas da sua avaliação, quase do seu gosto. Eu posso não o fazer, mas defenderei sempre o direito de alguém decidir de outra maneira. É discutível se incidentes recentes como estes exigem um "diálogo entre religiões". O debate público que permite clarificar cada caso num sentido ou noutro parece mais apropriado do que a conciliação. Os ganhos do discurso iluminista são demasiado preciosos para serem transformados em valores negociáveis. Defender estes ganhos é a tarefa que hoje enfrentamos.

4 Comments:

At 20:56, Anonymous Anónimo said...

http://comparar.wordpress.com/

Este blogue tem por objectivo divulgar pontos de vista diferentes e até opostos.
E isso irá depender muito da participação dos interessados.
Quem estiver interessado em participar no memso, façam favor.
mail:
comparar@gmail.com

 
At 22:26, Blogger AA said...

é um excelente artigo...

 
At 00:21, Anonymous Anónimo said...

Excelente artigo:D
Você colocou o dedo na ferida. Tenho observado esta regressão - o contra-iluminismo- há um bocado de tempo notadamente na França, justamente no país do Iluminismo.
Assim seu artigo veio a calhar:D

 
At 06:02, Blogger Al Cardoso said...

Nao poderia estar mais de acordo.

Posso assinar ate de cruz. (cruzes canhoto)

 

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