Observatório da Jihad


24.5.06

Sensibilidade, relativismo e cobardia

Helena Matos
in Público, 22 Abril 2006


A sensibilidade regressou. Não se trata propriamente da sensibilidade na acepção que Jane Austen lhe deu. A sensibilidade deixou de ser um apanágio de jovens inglesas oitocentistas, divididas entre o amor e o dever, o romantismo e a realidade, para se tornar numa palavra central da novilíngua que nos rege.
Sensibilidade é a palavra através da qual designamos os actos de violência, intolerância e fanatismo daqueles que não temos coragem de denunciar e enfrentar. Sensibilidade é também a expressão que tem justificado o que consideramos injustificável. Em nome da especial sensibilidade dos muçulmanos, as nossas democracias pactuaram com o inaceitável no seu território: poligamia, casamentos forçados, direitos diferentes para as mulheres, aplicação da sharia. No Canadá os imãs reivindicaram a possibilidade de constituir tribunais para julgar muçulmanos onde seria aplicada a sharia. E note-se que estiveram muito próximos de atingiros seus objectivos. Em França, entre mil e um problemas, surge agora a questãodo sexo dos médicos que atendem os muçulmanos. Pode uma mulher ou o marido dele recusar um técnico de saúde por ser homem? Pode. Os muçulmanos fazem-no. Assim, pouco a pouco, a sensibilidade tornou-se um traço distintivo dos fundamentalistas islâmicos mas também dos terroristas. Estes matam, torturam, destroem... não porque sejam intolerantes mas sim porque a sua sensibilidade foi ferida. Após a questão dos cartoons dinamarqueses, as notícias dando conta de reacçõesde intolerância têm sido remetidas para o fundo das colunas noticiosas, mas os casos não só se repetem - ameaçando banalizar-se - como surgem nas mais improváveis situações. Casos recentes como os das etiquetas da marca Bershka ou da série televisiva South Park não mereceram particular relevo, mas o que aconteceu com a Bershka é um sinal muito claro de que a fasquia para a sensibilidade islâmica se sentir ofendida tem estado a baixar. Mais precisamente, num posto de venda que esta marca espanhola tem no Dubai, após contemplarem as etiquetas da nova colecção, algumas clientes concluíram que essas etiquetas representavam uma mesquita misturada com "símbolos do amor", vulgo corações atravessados por setas. O receio de actos de violência por parte de alguns muçulmanos e também o facto de na blogosfera se começar a apelar ao boicote aos seus produtos fez com que, mal o caso foi conhecido, o grupo Inditex tenha substituído todas as etiquetas não apenas nas suas lojas do Dubai mas também nas centenas e centenas de lojas que tem em todo o mundo.
Note-se como imperceptivelmente se passou daquilo que é um dogma para alguns muçulmanos - a não representação de Maomé - para o interdito da representação de tudo aquilo que esteja relacionado com o islão. Não deixa de ser curioso assinalar também que houve quem sugerisse que não se tratava duma mesquita mas sim do Taj Mahal e assim não seria necessário substituir as etiquetas. Donde se percebe que uma das regras da sensibilidade na novilíngua é que ela não é um atributo de todos. Porque poderemos representar o Taj Mahal, as pirâmides, a Basílica de S. Pedro e não uma qualquer mesquita? O caso da Bershka é interessante mas não passa dum pequeno episódio quando comparado com o que aconteceu na série de animação South Park. Em Março deste ano, os criadores desta série tida como provocadora e irreverente tinham resolvido enfrentar um dos grupos religiosos que mais dificilmente lidam com a crítica. Mais precisamente Matt Stone e Trey Parker, os autores de South Park,resolveram satirizar a Igreja da Cientologia. Acontece que Isaac Hayes, que dava voz a Chef, uma das personagens de South Park, resolveu abandonar a série. MattStone não cedeu e declarou: "Em dez anos e mais de 150 episódios de South Park, Isaac nunca teve problemas por a série satirizar cristãos, muçulmanos, mórmones ou judeus. Ele teve um súbito caso de sensibilidade religiosa quando chegou a vez de a sua religião ser caricaturizada." Mas escassas semanas depois deste caso, já este mês, Stone e Parker perceberam que as religiões não são de facto todas igualmente sensíveis. Ou, parafreando Orwell, as religiões são todas iguais, mas há algumas mais iguais que outras. Assim, um episódio em que surgiria uma imagem de Maomé não foi para o ar. Em sua substituição foi emitido um outro no qual se vê Jesus Cristo a defecar em cima de George W. Bush e da bandeira americana. O recurso à escatologia não deve ser suficiente para esconder o óbvio: com Maomé não se brinca. Somos muito irreverentes, muito polémicos mas apenas com aqueles cujos seguidores não nos ameaçam degolar numa esquina. Na verdade, não está em causa a sensibilidade do outro. O que está em causa é o medo que o outro nos inspira. Por exemplo, o jornal The New York Times, que à semelhança da maior parte da imprensa norte-americana não reproduziu os cartoons de Maomé alegando que os mesmos eram inadequados e susceptíveis de gerar ataques gratuitos, considerou adequado publicar, cinco meses após os atentados do 11 de Setembro, umas caricaturas sobre as viúvas dos atentados. Sorridentes e carregadas de notas, uma delas dizia: "Continuo à espera que Kevin regresse, embora saiba que tal não acontecerá. Felizmente, os 3,3 milhões de dólares que recebi da Cruz Vermelha mantêm-me quente durante a noite." Noutro desenho, uma outra viúva agarrava o jornalista pela gravata e dizia-lhe a propósito do marido: "Sim, quando me telefonou estava a queimar-se." Destes episódios resulta uma pergunta: durante quanto tempo será possível mantermos a aparência de que somos uma sociedade que cultiva a liberdade e a crítica? Mas também resulta uma inquietação: por exemplo, os grupos católicos que protestaram contra a série Popetown que a MTV vai passar em breve sentirão neste momento que se tivessem optado por aterrorizar os autores da série e por fazer duas ou três manifestações violentas teriam sido mais bem sucedidos nos seus protestos? Note-se que é certamente chocante para um católico ver Cristo a rir à gargalhada pregado na cruz como se via na publicidade à dita série. Por outro lado, o próprio enredo de Popetown, com o seu Papa louco e um cardeal criminoso, deve ser mais do que suficiente para ferir a sensibilidade de inúmeros católicos.
Por fim, mas não por último, ao aceitarmos a ditadura da especial sensibilidade dos muçulmanos, estamos não só a perverter os valores da nossa cultura como reduzimos uma comunidade de milhões e milhões de pessoas a um estereótipo. Estamos também a proceder a uma simplificação das comunidades muçulmanas. Como no sonho de qualquer clérigo fundamentalista, dos muçulmanos só sabemos que vivem em função da sua fé. Delas só sabemos o que dizem os homens que falam em nome da fé. Para elas só desejamos não ofender a sua fé. E à fé e pela fé desculpamos todos os desmandos praticados, em seu nome, pelos homens.

1 Comments:

At 23:31, Anonymous Anónimo said...

"parabenizo-o".isto é de gritos...

 

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